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Crítica de António Cabrita

Seis e trinta: a Teresa sai de casa com as 3 crianças. Rebolo-me na cama tentando dormir meia-hora, sem êxito. Ponho-me então a traduzir alguns aforismos de Karl Kraus. Às 7h15 levanto-me, lavo-me, visto, arrumo na mala os dois livros de que vou precisar e tomo um chá. Dez minutos depois encaminho-me para a porta e descubro-a fechada pelas duas trancas, como se ainda não tivesse ninguém de casa. Saio
atarantado pelo mistério da coisa e cinco minutos depois chego à aula: ninguém. Espero dez minutos até que me lembro que passei essa aula para as 11h da manhã. Vou então beber um café, na esplanada onde
escrevo isto. Fica a coisa no ar? Quem trancou a porta, se estava sozinho e eu não me levantei da cama? Terá sido o fantasma de Armando, do filme do Sol?


Ontem fui à estreia de Impunidades Criminosas, do Sol de Carvalho. Deve dizer-se que deste filme há também uma versão para curta, e que aliás foi feito com um orçamento para uma curta, tendo o realizador investido pessoalmente depois mais qualquer coisa no seu projecto. Mas estas balizas tornam a aposta mais corajosa, os riscos maiores.


Primeira constatação: é um filme absolutamente honesto, o que é menos frequente do que se pensa em época de “tricheurs” e que vive da soma dos seus artifícios. Por exemplo: a forma como a câmara está maioritariamente à mesma distância das personagens (à Ford) não permite à partida que o filme seja resolvido na montagem - tudo aqui tem de ser dado pela narrativa e pelo jogo dos actores.

 

A história, que originalmente é da Maria José Arthur (uma autora moçambicana com coisas muito giras mas que está por publicar), é a crónica de um fait-divers: uma mulher, Sara/Esperança Naiene, cansada da pancada do marido, Armando/Breznev Matezo, mata-o; só que este está envolvido com a mafia local e ela acaba por herdar os sarilhos dele – vê-se então na necessidade de matar de novo. Mais tarde, da prisão, conta aos filhos como teve de se livrar de todos os fantasmas, os físicos e os espirituais” (à boa maneira africana). E o que nós vemos
é o seu flash-back.


Filme de poucas personagens – quase unicamente a protagonista e as suas circunstâncias -, é narrado de forma sóbria, sem um pingo de gordura. Economia narrativa a que não é alheia evidentemente o facto desta ter sido uma curta que passou a longa, embora a sua justeza quase lacunar, inclusive nos diálogos, ganhe uma conveniência adicional por via da arquitectura relacional que aqui se desenha. O filme mimetiza, a meu ver bem, um certo laconismo de relações no tecido urbano moçambicano, tendo em conta o xadrez com que na terra se
jogam a obsessão das hierarquias e o dos papéis sociais. Não esqueçamos que Moçambique é um país onde a obsessão do respeito hierárquico é tão grande que isso inviabiliza quaisquer reformas do Estado, porque tal levaria a que os subalternos perdessem por sua vez a sensação de terem um pequeno poder sobre funcionários menores. Que a sub-subchefe Joaquina deixasse de ter o seu “mainato” para lhe ir buscar um pãozinho, ou para ter alguém a quem atribuir a culpa de se haver perdido um processo na sua secretária, é impensável, e por isso o Estado não pode minguar.


Este mecanismo perverso é o que está presente na relação de todas as personagens entre si, nesta estória de uma mulher a braços com os “pequenos poderes” que a sitiam.

 

Os mandantes do Chefão Chiquinho Paixão falam-lhe desde o primeiro momento como se ela já soubesse de antemão a quem deve obediência – não estão ali para estabelecer relação. Por isso são secos e directos: partem do não-dito estabelecido. O mesmo se passa com tudo o que envolve Chiquinho Paixão – está convencionado que seja ele quem estabelece as actividades legais e ilegais do bairro (daí que a própria polícia lhe deva tributo), o que marca de imediato a natureza da sua relação com a protagonista (ainda que ela desconhecesse a “importância” do seu antagonista): ele está ali para sacar, não para persuadir, para exigir e não para negociar, para se aproveitar sexualmente dela e não para a seduzir.
 

Aquilo que para um olhar ocidental (ou ocidentalizado) pode parecer caricatural tem infelizmente alguma conexão sociológica: a mentalidade de grande parte dos homens nos bairros periféricos de Maputo está maculada por um machismo que prescinde de mais conversas e da “construção da intimidade”, preferindo ir “direito ao assunto”. Todos à partida estão cientes do seu papel, num circuito onde, mercê da confusão generalizada dos valores e do que seja a “tradição”, a mulher é muitas vezes o elo fraco, o que a deixa exposta a muitas arbitrariedades. Como se critica no filme, de modo a um tempo incisivo e sorridente, no caso do “kutchinga” (a tradição da mulher viúva passar a ser “pertença” do irmão do falecido, o que era uma forma de protecção rural e se transformou numa caricatural alavanca da prerrogativa do macho em certos estratos da grande cidade).

Portanto, o modo como se desenrolam as cenas entre Chiquinho Conde e Sara, simples, directas, sem nuances (desde o primeiro instante que “ele manda ou induz”, como na cena da cerveja, e que ela se limita a parecer submissa, cumprindo o papel que esperam dela), reflectem a noção utilitária do entendimento dos outros (e do seu corpo), e do mundo que, permeia muito da sociedade moçambicana actual, por muito que isso custe aceitar. E tal legitima que os dois crocodilos bebés que o Armando (o marido morto) criava no quintal, se transformem em marcadores de transição para as sequências narrativas, ganhando relevo como metáfora de um ambiente social predatório.
 

A este nível a sua repetição está sustentada.
 

Contudo, pela repetição a montagem cria uma espectativa quanto aos crocodilos e ao seu papel na trama narrativa e função que depois não se cumpre. Esse suspense deixa no espectador uma ligeira sensação de
um défice – explicava o Tchecov, se uma espingarda surge postada na parede sobre a chaminé no primeiro acto, no terceiro acto a arma tem de ser utilizada – que defrauda um pouco “a necessidade” da repetição
das imagens dos crocodilos. Este é a meu ver, um das opções discutíveis do filme, que os crocodilos não cheguem a organizar uma peripécia e permaneçam, como “imagens congeladas”, só ao nível
simbólico.


Menos problemático é o pouco desenvolvimento da “louca”, que pode ser lida como uma projecção inconsciente dos medos de Sara e que por isso a assaltam de forma fugaz, e intermitente e com a “pobreza” de
mensagem que é comum aos traumas.


O outro ponto crítico, para mim, está na “limpeza” da narradora, na voz off. Tanto ao nível da dicção como no do texto que lhe corresponde, a narradora parece “plantada” em vez de brotar organicamente do tecido do filme. Há uma excessiva preocupação com o teor da “mensagem” (que o seu teor seja construtivo e um tudo nada pedagógico, embora seja uma carta para os filhos…), o que lhe dá recorte mas retira expressividade (senti que lhe falta “sujidade”, como um ou outro desacerto gramatical, uma réstia de hibridez no léxico, bem como hesitações e alternância rítmica ou respiratória na emissão do texto – são exemplos; está, em minha opinião, uma voz off excessivamente de série televisiva). Aliás, aquela voz off, do meu ponto de vista, não cola completamente com a personagem, muitíssimo bem interpretada por Esperança, e que – e este é um dos pontos altos – consegue exprimir as contradições da personagem (também ditas aliás, na vacilação sobre como acolher Paixão, por exemplo) e as suas motivações mais profundas, construindo uma espécie de anti-heroína.

 

Também vai muito bem Eliot Alex em Chiquinho Paixão.
 

(Discuti entretanto o filme com alunos meus, que o viram também, e confirmei que no geral é muito mais fácil à primeira apontar coisas negativas do que positivas e que as pessoas tendem a confundir aspectos parcelares com aspectos estruturais; para além de que era manifesto de que o facto de serem jovens actores em ascensão e de não terem participado no filme lhes incute inconscientemente um maior espírito crítico, porque sim… - e o que se segue é um pouco uma resposta a algumas reticências colocadas:)


A história, enxuta – quase minimal –, resulta, e mesmo um ou outro pormenor que à primeira vista pareça mais discutível, como a cena caricata em que o polícia guarda o dinheiro para si “à beirinha” de o ir “devolver” ao gangster, funciona afinal como uma piscadela de olho ao espectador moçambicano, espectável para o modo (auto-)crítico como o moçambicano médio olha para os desmandos do seu quotidiano, sendo portanto na narrativa um índice paródico. Por outro lado, na segunda parte do filme, depois da fuga da família para o campo, a ligeira quebra de tensão e de peripécias acaba por reforçar o inesperado do aparecimento subitâneo de Chiquinho Paixão, pois ele tal como o poder é “invisível” e “está por toda a parte”, sem que, pelo seu lado, esse espaço de não-acção se tenha estendido para além do tolerável.

 

Portanto para além das minhas duas pontuais reservas no filme, que são aspectos secundários (e pouco “visíveis” para a grande maioria dos espectadores), o filme é agradável de seguir, tem unidade estilística, e além do mais demonstra que já é possível fazer filmes em Moçambique com uma qualidade técnica indubitável (excelente a fotografia, o trabalho do som, boa a condução de actores no geral).
 

Fica claro que o Sol de Carvalho merece amplamente que lhe seja dada a oportunidade de ter um orçamento capaz para produzir e realizar uma longa-metragem em condições regulares, posto que de filme para filme é verificável nele uma crescente qualidade oficinal e apuro estético. Aliás próprio a quem gosta de discutir as formas.

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